Opinião | Porque calar Aleksandr Dugin e a tolerância liberal à violência política

Foto: reprodução

O atentado que ceifou a vida de Darya Dugina, filha do filósofo e cientista político Aleksandr Dugin, principal expoente contemporâneo em defesa da multipolaridade, e que tinha como alvo o próprio Dugin, demonstra que há players de disputa do poder que compreendem intelectuais como alvos, partindo da premissa de que ideias disseminadas que contradizem determinado tipo de narrativa podem e devem ser consideradas uma ameaça a ser extirpada. Dugina encabeçava a lista de sancionados pelo Reino Unido enquanto o próprio pai sofria sanções dos Estados Unidos desde 2014.

A Quarta Teoria Política, de Dugin, é o mais significativo e hercúleo desafio intelectual e, portanto, político, já feito ao “Fim da História” descrito e anunciado por Fukuyama, que é justamente a situação em que vive o Ocidente hoje. Quem já teve a oportunidade e se deu ao denso trabalho de ler e interpretar Dugin, inevitavelmente apercebe-se que sua obra nada tem de “fascismo” nem de “extrema-direita”, aliás, muito pelo contrário. Se fosse esse o caso, curiosamente seus preceitos teriam nesse momento reverberação positiva no espaço do sistema ideológico do poder ocidental, que não hesita em chamar os nazistas ucranianos de heróis da liberdade e seus eugenistas e racialistas de progressistas.

O ponto nevrálgico da obra de Dugin é buscar uma alternativa sistematizada, teoricamente coerente, ao liberalismo vitorioso ao final da Guerra Fria, sem com isso buscar reviver o socialismo e o fascismo, historicamente derrotados e superados. A alternativa, nas condições do século XXI, seria a multipolaridade, ou seja, o diálogo de civilizações, em que cada civilização viveria e exerceria sua autonomia e autenticidade sem ser importunada pelas outras.

Nada soa mais ameaçador aos centros de poder do Atlântico Norte, que desde os preâmbulos da Primeira Guerra Mundial buscam uniformizar o mundo segundo seus valores e interesses, impondo a unipolaridade geopolítica estadunidense e naturalizando a universalização das formas existenciais do liberalismo, como o “mercado”, os “direitos humanos” e o “multiculturalismo”, em detrimento dos padrões específicos e autênticos de cada civilização.

Esse caso levanta questões difíceis para os intelectuais ocidentais. As potências ocidentais se alinharam à Ucrânia contra a Rússia em resposta à invasão de Putin. Na perspectiva ocidental, a Ucrânia representa liberdade e democracia; a Rússia, autoritarismo e repressão. Zelensky é um herói; Putin, o mal personificado. O significado desse alinhamento geopolítico no plano intelectual é que comentaristas que ousam tentar compreender determinadas tomadas de ações russas, ou que se opõem a qualquer parte da posição ucraniana ou ocidental, são, quase que de forma unânime, tratados praticamente como traidores, para não mencionar situações em que são satanizados como “coniventes com a violência e o autoritarismo”.

Desqualificar vozes, escritos, ideias e diagnósticos que destoam da unanimidade ocidental é, ainda que curiosamente, intolerável para o estamento liberal. Pesado na balança da justiça, nada se compara ao crime de tentar compreender motivações que levaram ao conflito eslavo para além do “autoritarismo expansionista” de Putin.

Dugin e Darya representam uma visão de ordem mundial. É impossível pensar em política e não se inclinar para uma visão ou outra, seja nacionalismo, internacionalismo, imperialismo, anarquismo, republicanismo etc. Essas visões têm consequências quando são concretizadas. Mas devemos resistir de qualquer forma a aceitar, justificar, desculpar ou celebrar a violência física contra pensadores de quem discordamos, por mais viscerais que estes sejam. O mundo está obscurecendo. Assassinar intelectuais não traz luz. Tampouco mata suas ideias.

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