“A arte é um dos meios que une os homens”, disse, para história, Tolstói. No nosso tempo, porém, até a arte – ou especialmente a arte – divide os pensamentos e ações dos homens. E, acreditem, essa divisão é amplificada pelas redes sociais, onde a pressa desnecessária elimina o filtro da reflexão e da checagem, deixando um espaço imenso para as bobagens vomitadas na internet.
A abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 foi um espetáculo de inclusão e inovação, alterando a lógica tradicional de apresentar a cidade sede. A capital francesa, com sua beleza e mensagem de alto nível, foi o palco de um evento magnífico. Porém, não tardou para que a estupidez encontrasse seu caminho, tanto em Paris quanto no Brasil, especialmente entre aqueles que, nem comer de garfo e faca são capazes. Uma galera que acredita que um Cartier, um Patek Philippe, são suvenir.
O evento foi uma verdadeira obra de arte, mas sobraram políticos incapazes de reconhecer o que é um simples rabisco ou uma complexa obra de arte. Apressaram-se para criticar a abertura dos jogos, alegando que a recriação de uma famosa pintura ofendia suas sensibilidades. Erradamente associaram a obra à “A Última Ceia”, de Leonardo da Vinci, um italiano, ateu fervoroso e homossexual.
Na verdade, bastava um mínimo de atenção – e aulas de educação artística – para perceber que Baco, ou Dioniso, nunca foi retratado por Da Vinci. A apresentação, como informado pela organização, se inspirava em “A Festa dos Deuses”, de Jan van Bijlert. Uma celebração dos maiores do olimpo grego, uma reunião pagã. Portanto, a drag coroada não era Jesus, mas Apolo. Transfobia, pura e pintada na testa de quem enxergou, com olhos cegos de preconceito, outra coisa naquele ato.
O incômodo hipócrita e absurdo desses que acusam ofensa em tudo que tocam suas preferências, medos e sensibilidade reprimida é o que mais desperta a atenção. Mesmo que a apresentação tivesse revivido a “A Última Ceia”, que problema haveria em uma trans representar aqueles que estavam na tela? Pessoas trans pertencem aos grupos mais vulneráveis do Brasil. Ao menos 90% já declarou ter sofrido algum tipo de preconceito. A violência também é uma marca que persegue, mata e tortura homens e mulheres que expõem sua condição de vida.
Marco Aurélio, o filósofo-imperador, registrou que “a arte de viver é mais parecida com a luta do que com a dança, na medida em que está pronta para enfrentar tanto o inesperado quanto o imprevisto e não está preparada para cair”. Talvez nossos políticos devessem aprender com aquilo que os livros e a história falaram sobre o tempo… nosso, passado e futuro.
“Não é de Deus”, se permite o emprego do grito popular da rua, tentar impor sua forma de ver o mundo, suas convicções religiosas, viver para fortalecer ou manter seu poder, usar energia para lacrar na internet. Esquecem estes, principalmente os vestidos de cargo público, da tarefa humana, empática, de trabalhar para a erradicação dos dramas sociais, como a transfobia, da travestifobia, do transfeminicídio e de outras violências diretas e indiretas contra a população trans no país.
Acredito que tantos dos eleitos não conhecem a frase do escritor e ensaísta francês Henry de Montherlant. Mas, ainda desconhecendo, moldam o pensamento que guia os passos da maioria deles. Dizia que “a política é a arte de captar em proveito próprio a paixão dos outros”. Hoje, infelizmente, o ódio, a raiva, dominam o coração (a paixão), um relacionamento íntimo de uma multidão. E os mais habilidosos – e maldosos – conscientemente aplicam o que Montherlant deixou de ensinamento.
Quando o político quer lacrar e é burro, quem paga o preço é a sociedade. A superficialidade bloqueia o necessário filtro para as bobagens vomitadas na internet. A pressa em expor para ganhar like, em vez de refletir, é o que transforma o potencial de uma política empática e inclusiva em um show de ignorância e insensibilidade. As redes sociais amplificam esse comportamento, transformando cada tweet, cada post, em uma corrida para ver quem grita mais alto. No meio desse barulho, perde-se o essencial: a humanidade. E a arte, que deveria nos unir, acaba sendo mais uma vítima desse triste espetáculo.
Tarciso Souza, jornalista e empresário
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