Há exatos 72 anos, nossa grande romancista brasileira, Rachel de Queiróz (1910-2003), rasgava o verbo em seu artigo, “Olhos Azuis”. A viajante do longo século XX procurou tecer contribuições interessantes para a terra do sul, no entanto, arrancara rancor de seus leitores.
À época, a escritora modernista de 38 anos de idade (primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras) era cronista da revista O Cruzeiro, e se incomodou com o que viu em solo brasileiro. A terra sulista era o avesso do projeto de Nacionalização proposto por Vargas, que tinha como objetivo construir um país patriota, valorizando a cultura brasileira. Ela, fora testemunha do abismo colossal que existia entre o Sul, o Centro-Oeste e o Norte-Nordeste, sobretudo à cultura dos povos que acá viviam.
Era 1949, recém havíamos restabelecido a paz no globo, após a Segunda Grande Guerra Mundial (1939-1945). Blumenau, perdia parte de seu território novamente (desta vez, Massaranduba) que seria anexado para formar o novo município de Guaramirim, no extremo Norte do Estado.
Rachel sabia o que estava fazendo e não temeu a onda autoritária que procurou silenciá-la. Para se ter uma ideia, a Câmara Municipal, representada por Herbert Georg, o prefeito, Frederico Guilherme Busch Jr., o deputado federal, Max Tavares D’Amaral, entre outras personalidades públicas tomaram nota da situação e enviaram correspondências ao editorial exigindo retratação da literatura nordestina, o que não ocorreu.
“Olhos Azuis” foi publicado originalmente em 19 de março de 1949, na revista O Cruzeiro, edição de Nº 19, e republicado no Tomo XLIII, Edição Nº 5 e 6, de maio/junho de 2002, na Revista Blumenau em Cadernos.
Reproduzimos abaixo, na íntegra, o teor do artigo (transcrito), bem como, em seguida, o protesto dos estimados representantes blumenauenses (citações):
“Nem parecem olhos de brasileiros aqueles olhos azuis com que nos fitam as gentes de certas zonas do sul. Tão claros, tão arianos, brigando muitas vezes com a pinta de sangue negro que o seu dono já possa ter de mistura e que se revela no cabelo ou na feição mulata, ou, quando o tipo branco permanece fixo, brigando com a fala mansa de caipira, com o descanso, a gentileza, o pé no chão, e outras características tão nitidamente nacionais.
Isso porém se registra em alguns casos, em algumas regiões. Há outras em que os olhos estrangeiros combinam com tudo o mais do indivíduo, e de brasileira aquela gente não tem nada, só mesmo o direito que a constituição lhe dá de brasileiros se chamarem, porque aqui nasceram – naturalmente, não por seu gosto.
Quem anda pela chamada “zona alemã” dos estados do sul, e especialmente pelo “Vale do Itajaí”, em SC, a sensação que tem é de estar em país estrangeiro, e país estrangeiro inamistoso. E essa sensação nos é transmitida não só pela cor do cabelo e dos olhos dos habitantes, não só pelos nomes que se ostentam nas placas das lojas e dos consultórios, não só pelo estilo arquitetônico, é, antes e acima de tudo, pela fala daquela gente.
O brasileiro do Vale do Itajaí quando fala língua nacional, fala-a como um estrangeiro. Fala-a como a falaria qualquer alemão com poucos anos de Brasil, em certos casos nem assim a sabe falar. Fala mal, com sintaxe germânica, com uma pavorosa pronúncia germânica, e fala-a principalmente com um desinteresse, um descaso tal como devem falar os ingleses coloniais o dialeto dos cafres, pouco e péssimo apenas o suficiente para se fazerem entendidos pelos nativos nas suas transações obrigatórias.
Isto, a língua é o obstáculo principal. Mas sente-se que existe, além da língua, um outro obstáculo mais sutil a separar brasileiros e teuto-brasileiros no Vale do Itajaí. Seria forte chamar desprezo o que eles sentem pelos habitantes do resto do Brasil – mas diabo é que não encontro outra palavra mais amena. É entretanto, um desprezo disfarçado, uma espécie de desprezo atencioso, porque depois do trabalho de “nacionalização do Vale do Itajaí”, e mormente depois da guerra e da derrota nazista, os alemães dali já não se atrevem a assumir abertamente a sua antiga atitude de super-homens. A impressão que se tem é que eles se encolhem, mas ainda rosnam. São obsequiosos, corteses, talvez até solícitos. Se conversam em alemão num grupo de rua e lhes passa por perto um ostensivo brasileiro de pele morena, eles mudam de língua enquanto o brasileiro passa e trocam qualquer palavra em português. Porém mal o brasileiro se afasta dez passos, logo eles juntam as cabeças e tornam a engrolar conspirativamente na sua língua de gringo.
O grosso deles vive naturalmente nas cidades de Joinville, Blumenau, Pomerode (que o governo tentou inutilmente crismar para Rio do Testo), Brusque. De Brusque para lá acham que fica a fronteira da sua nação: sentimento esse que foi muito bem traduzido pelo dono da principal confeitaria de Brusque, um alemão mal encarado que não sei se nasceu aqui mas que em todo caso fala um português infame, e que nos declarou textualmente: “Se os senhores querem conhecer SC, podem ir embora daqui, o resto, Itajaí, Florianópolis, só tem sujeira lá”.
Se há, pois, quisto racial ainda em plena exuberância é aquele. Aquilo não é Brasil, ou se o é, é Brasil transviado, Brasil em mãos alheias. Vivem os seus habitantes como se fora em terras da Europa e o pouco amor que reina entre as cidades nacionais e alemãs é “evidente” alarmante. Do lado dos alemães eles não se atrevem a falar a gente com tanta franqueza, mas os catarinenses, especialmente os de Itajaí e Florianópolis, não escondem o seu rancor, por aqueles a quem chama de “galegos”. Vivem os nacionais para um lado, vivem os alemães para o outro, quase tão separados quanto negros e brancos nos EUA. Até praias os alemães têm separadas: que o digam as lindas areias de Cabeçudas ou Camboriú, onde se não fosse o sol brasileiro, a gente pensaria estar às margens do mar do norte.
Alguém tem que dar um jeito nesse problema enquanto ele não se vira drama. A fórmula de solução é entretanto o difícil e, pelo menos até agora, parece que ainda não foi encontrada. E enquanto se espera o jeito, as crianças que nascem no Vale do Itajaí continuam aprendendo o alemão como língua pátria, se batizando em alemão, lendo em alemão, pensando em alemão, vivendo e morrendo em alemão.”
Dos olhos azuis das ilustres figuras públicas, partiu algumas observações críticas às insinuações proferidas pela digníssima escritora, muitas delas, condicionadas em desconfiança a capacidade da mesma, “a escritora, que por sinal tem algum valor, teceu comentários sobre os que vivem no vale do Itajaí”, teria ela “um temperamento mórbido com relação aos sentimentos germânicos”, estaria servindo “a um grupo miserável que sabota as iniciativas brasileiras, como a nossa”, os nacionalizadores, “que vêem no teuto-brasileiro um inimigo, não lhes concedendo o direito de agir como filhos e donos desta terra”, segundo relato publicado no periódico Vale do Itajaí, Ano V. Nº 48-49, mar/ abr de 1949. D’Amaral, da mesma forma, em discurso proferido na Câmara Federal reafirmou algumas considerações e justificou a propagação do fato na mídia local, “Foi por certo por essa razão, pelas inverdades e injustiças, e mais do que isso, pela parcialidade, pela agressividade, pela maneira insultuosa em que estão vazadas essas notas”.
A recusa perpetuada desde lá, é a prova de nem tudo pode se dizer, mas também, nem tudo é obrigado a reservar-se. Nada e nem ninguém poderá tirar-lhe o mérito exemplar com que tratou diligentemente da realidade que acá pairava, muito menos lançar mão do prodigioso conteúdo daquele artigo em protesto a um discurso ridiculamente acalorado pela qual fomos sempre incumbidos de perpetuar – a incrível história da terra de alemães onde vivem brasileiros. Resta-nos, em tempo, aprender, desaprender e reaprender a história, digo, em outras palavras, o passado é a lembrança que demasiadamente procuramos escondê-lo, mas é sempre presente. Para tanto, há sempre versões que partem de escolhas pessoais, políticas e ou sociais que cabem no seu tempo.
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