Nesta semana, mais precisamente em artigo publicano no jornal Folha de São Paulo no dia último dia três, a advogada Paola Ferreira afirmou, com intensa reprovação, que Bolsonaro não pode usar a expressão caboclo para se referir a Orlando Silva, deputado (não eleito) do PCdoB. Uma vez que o termo caboclo, ainda no Brasil colônia, era utilizado de modo pejorativo (dado que seria o mestiço do índio com o branco, e não o superior, o branco), então agora também não poderia ser usado. Contudo, a autora do artigo omite que durante vasto período a expressão foi usada sem nenhuma carga ofensiva.
Esse pensamento hermético desconsidera a história, a antropologia e, inclusive, formas de usos e costumes. A intenção parece ser a de estabelecer mais uma falha de Bolsonaro. Desta vez, todavia, ele não fez uso do termo de forma negativa. Esse modo de identitarismo tende a identificar expressões do racismo estrutural em diversas partes, especialmente quando atrelado a um opositor de narrativa ideológica. Dito isso, cabe efetuarmos uma reflexão acerca desse racismo estrutural tão fortemente alardeado nos últimos anos e que, curiosamente, vem gerando na população certo cansaço, o qual se torna ojeriza e se volta justamente contra quem denuncia.
Vejamos. O Império foi escravista, mas não se pode afirmar que sustentava doutrinas racistas. As relações entre o negro vindo da África e o Império brasileiro eram, fundamentalmente, econômicas, não determinavam uma tipo de sociabilidade que, contemporaneamente, designamos como preconceito racial e racismo. Muitos negros filhos de senhores de terras com escravas herdaram o nome do patrão e boa educação, em muitos casos, recebendo educação na Europa. Estes, então, ao retornar para o Brasil ocuparam cargos importantes. Tiveram importante papel no movimento que pressionou o Império a dar fim no regime escravocrata. Escravismo é uma coisa e racismo é outra. A República não foi escravocrata, mas sim, suscitou margem para o racismo. Não por si mesma, mas pelo modo que ela conformou sua política de administração da mão de obra.
É plausível afirmar que o racismo se intensificou na República, nos grandes centros, entretanto, os negros se integraram aos imigrantes na indústria e no comércio. E as lutas civis de esquerda contemplaram essa população negra urbana e proletarizada. Em grande medida, eles se destacaram como propagadores de teses socialistas. Mais tarde, especialmente nos governos de Vargas, o movimento negro cresceu e gradativamente ganhou considerável proporção em nossa cultura. O negro e o mestiço se colocaram, então, como pertencentes a uma autêntica minoria, especialmente após a Segunda Guerra Mundial e do conhecimento público internacional sobre o genocídio hitleriano, que ajudou a firmar a própria noção de minoria.
Quanto mais o racismo recrudesce, mais os negros e mestiços se aliam a brancos de esquerda ou liberais, se pondo a trabalhar em diversas frentes para mudar costumes e leis. O resultado é muito significativo. A Constituição atual proíbe o preconceito racial. Não faz muito tempo, o presidente Lula estabeleceu que o crime de injúria racial é equivalente ao crime de racismo. E não se trata de uma lei ilustrativa, uma mera formalidade. É uma das leis que mais se aplica e que mais se cumpre no Brasil. Somado a isso, foi criada a política de cotas no ensino universitário, a qual já completou mais de dez anos, inclusive. Os grandes canais de comunicação audiovisual, assim como a indústria da publicidade e propaganda, passaram a investir cada vez mais em atores e atrizes negros e mestiços. Machado de Assis foi traduzido no exterior e se tornou um clássico da literatura internacional. A sociedade brasileira se tornou, em sua maioria, antagonista do preconceito racial.
De forma dialética, a história brasileira mostra evidencia o triunfo da democracia racial sobre o racismo. Constitui-se por um povo cuja maioria numérica é negra, um povo que absorveu a cultura afro, principalmente no aspecto religioso. Um povo que conferiu à minoria negra (minoria sob o prisma sociológico) um tratamento especial. As escolas foram impelidas a encampar o ensino de cultura afro e história da África em suas bases curriculares. É crível dizer que possivelmente nenhum se esforçou tanto com o objetivo de consolidar uma prática de democracia racial nas bases jurídicas da democracia participativa. Não é exagero afirmar que isso é motivo para que o povo brasileiro sinta orgulho de seu estágio civilizatório. Há muito a ser feito, sem dúvida, mas o que já se fez é modelo para o mundo.
A tese do racismo estrutural, é, portanto, frágil sob a perspectiva histórica e sociológica. A sociedade brasileira não foi estruturada pelo racismo. O povo brasileiro não é racista. O Brasil não se sustenta em dogmas raciais e muitos seu povo pode ser caracterizado como estruturalmente racista. O racismo que permanece, e índices estatísticos evidenciam que em certa medida ele permanece, não faz parte do que estrutura o Brasil, pois concerne a focos que paulatinamente estão sendo eliminados. Tendem a ser eliminados. Todavia, isso pode perdurar em demasia caso a ideologia da tese do racismo estrutural, erigida no arcabouço neoliberal não for repelida, nutrindo o cansaço do povo até, talvez, esse se tornar regra.
A tese do racismo estrutural não é pragmática, tampouco uma forma eficaz de combate ao racismo. Não considera eventos históricos em seus devidos contextos, nem os movimento históricos pela igualdade em suas lutas. Cada vez mais se mostra menos um diagnóstico sociológico e mais uma ideologia. Culpa o povo brasileiro em vez de elucidar suas responsabilidades de modo didático. Cria uma imagem distorcida do país e constrange o povo, ao mesmo tempo em que desvaloriza de modo vergonhoso as vitórias dos movimentos surgidos socialmente. Suas premissas infundadas contemplam o neoliberalismo e o identitarismo gestado nele. Essa tese enquanto ideologia, valoriza negros e mestiços como vitoriosos por si mesmos em um contexto social hostil e racista, reforçando (o que poucos notam) a ideia de individualização atomista do capitalismo, fator que deveria ser alvo de categórica crítica por parte de “progressistas”.
Essa tese precisa ser evidenciada quanto ao seu caráter ideológico. Dela sai e sairá somente ranços e ressentimentos, desvalorização de conquistas civilizatórias e clivagens nocivas ao bom exercício da sociabilidade. É preciso que o povo brasileiro arranque o véu da culpa imposta a ele e afirme de cabeça erguida sua condição de exemplo internacional para o avanço no ideal da democracia racial.
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