Opinião | Sem eira nem beira, oprimidos nas ruas

Imagem: Releitura da obra "Retirantes" de Portinari, obra de Alexander Pacheco

Adianta tentar puxar qualquer uma das pontas de um nó cego? Esquece! Você vai esticando, mais e mais, em um esforço danado para abrir um tanto, oferecendo um fiapo de luz… mas a cabeça do infeliz continua piorando, fechando, apertando, sem espaço para um único sopro de vento passar. E pensar que nas cidades, cada vez mais, existem punhados de gente assim: que impedem qualquer possibilidade de uma outra realidade, diálogo e opinião. Como se tudo pudesse ser de uma única forma. Já dizia o velho mago, José Saramago, “a pior cegueira é a mental, que faz com que não reconheçamos o que temos pela frente”.

O mundo mudou! Graças a Deus que a evolução vai chegando. E a ciência ofereceram novas propostas para tratar de coisas milenares, que vem dos primórdios da civilização. O que não dá é para seguir e insistir em técnicas que não cabem, nem resolvem. Não funcionou? Já basta para atualizar as ideias. Sabe, é como pregar, como política pública, que a cultura do “esmola não” é a solução. Na boa, como podemos ser contra oferecer um pão, um trocado para o cristão que está ali querendo um segundo de contato, um respeito, uma troca de energia?

O antigo Aristóteles continuou respeitado após os anos provarem que a teoria da geração espontânea não funciona. Uma esmola nem ajuda, nem prejudica a tarefa do Estado em reabilitar o indivíduo. Em 2023, atualizando o filósofo, as pessoas precisam lembrar que ratos não nascem de uma pilha velha de roupas sujas. Da mesma maneira, os humanos em dificuldades não surgem ou desaparecem por um gesto de solidariedade. Ser ignorado, feito um e-mail de sexta-feira deixado para segunda, está longe de ser a solução para o infeliz que beira a morte.

Existir sem eira, nem beira, como diriam os portugueses que invadiram o Brasil, é a alternativa que restou aos fiapos de humanos que as experiências anteriores levaram a esperança embora. Sobraram corpos carentes de riqueza (eira), conforto (beira), apoio, atenção. Pessoas que precisam da mão presente do Estado para ajudar a reconstruir o caminho, tão difícil para qualquer um. Se para quem tem um quarto com coberta quente já é dureza, viver nas ruas, irmão, é tipo um Monte Everest todinho caindo sobre a cabeça todos dias, TODOS OS DIAS, todos, sem exceção!
Sabe aquela brincadeira histórica dos programas de auditório que o apresentador coloca o sujeito em uma cabine fechada, com um fone de ouvido tocando música, perguntando se ele topa trocar R$ 2 mil por um cacho de banana?

“A cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança”, diria o novamente Saramago. É mais ou menos isso que ocorre por ai. O não cidadão de rua, desprovido de qualquer vintém ou expectativa, que encontra, eventualmente, nos vícios o remédio para as dores que a sociedade estalou em suas costas, é convidado a substituir a sobrevivência na mendicância por uma subvida cheirosinha. Evidente que não aceita a banana em uma segunda ocasião.

Já diria o sábio estoico Epicteto: “é livre a pessoa que vive como deseja, nem compelida, nem atrapalhada, nem limitada. A pessoa cujas escolhas não são estorvadas, cujos desejos se realizam e que não cai naquilo que a repele. Quem deseja viver na mentira – iludido, enganado, indisciplinado, queixando-se, preso a uma rotina? Ninguém! São pessoas inferiores que não vivem como desejam; portanto, nenhuma pessoa vulgar é livre”.

Um par de olhos não servem para muito quando, grudado no injusto, está como um enfeite. Cegam os rostos desérticos, desaparecem as verdades, as dores, a sociedade. O brilho das telas, prejudicial para todos, vai crescendo assustadoramente. A humanidade, no caminho oposto, lentamente vai mergulhando em um nevoeiro, perdendo a luz, a paz, a esperança e compaixão. Tolerando a violência nos semáforos, em baixo de marquises e pontes… fazendo campanhas, criando teses e delirando por dores que brotam em planetas distantes, nos celulares.

Parece que muitos esquecem, emulam a realidade, ignoram a sobriedade de vida, nem esforço fazem para tentar os seus próprios nós desatar. Vagueiam por estas ruas sem cruzar um olhar com o próximo que precisa de ajuda. Babam nas redes por qualquer tolo espertalhão que teatralize ilusões fantasiando medos. Na realidade, parece, estamos todos sem eira, nem beira.

Tarciso Souza, jornalista e empresário

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*