Opinião | Ser Professor

Foto: reprodução

Existem muitas maneiras de ser professor, e respeito cada uma delas. Acho que, ao longo do tempo, a gente vai aprendendo a ser professor, respeitando nossa maneira de ser no mundo, nossa identidade.

Quem me conhece, sabe que sempre procurei exercer minha profissão com respeito, alegria e de forma democrática. Nunca fui aquela professora de quem os alunos tinham medo. O respeito que conquistei foi porque os amei, pelo reconhecimento de que eu estaria sempre ao seu lado, atenta, sabendo como cada um é, de verdade. Encorajando-os quando tiveram medo.

Uma das minhas primeiras experiências como educadora, e uma das que mais me recordo, foi trabalhar como professora de uma turma de 5ª série, de uma escola municipal de Blumenau, na disciplina de Ensino Religioso, lá pelos idos de 2002.

Pois, vejam vocês, eu, uma católica, nada praticante, com grande tendência ao ateísmo, fui contratada para ser professora de Ensino Religioso. Tinha tudo para dar errado, não é mesmo? Mas não deu. O fato é que a formação de cientista social me permitia lecionar essa disciplina e, depois, pude entender o porquê. Diferentemente do que eu pensava, o currículo da disciplina de Ensino Religiosos já havia evoluído e não tinha mais a ver com a imposição de uma única doutrina em detrimento de outras – conforme, de forma preconceituosa, eu acreditava – mas, sim, com a diversidade religiosa em uma perspectiva ecumênica e humanística.

Atuei em outras turmas também, mas essa 5ª série conquistou meu coração. Havia ali pessoinhas tão distintas, tão únicas, que me apaixonei. Tinha uma menina inteligentíssima, uma loirinha que poderia ser filha, de Mahatma Gandhi, dada a sua inteligência, eloquência e empatia. Mas que logo foi embora, acompanhando sua família, por conta da transferência do pai, no trabalho. Talvez por isso ela era tão simpática com todos. Já havia mudado muitas vezes de lugares, e por conta disso, tem-se que arranjar habilidades para fazer amigos rapidamente. Tinha outro aluno de língua afiada e muito petulante, mas cujos olhinhos curiosos e desconfiados, me chamavam a atenção. Depois fui perceber que sua petulância era defesa, era luta, de quem tem que aprender a se defender muito cedo na vida.  Mais tarde, no intervalo da aula, ele me confidenciou que era gay, que não tinha a aprovação da família e que pensava muitas vezes em suicídio. Tivemos muitas e muitas conversas durante todo aquele ano, sobre esperar, sobre não desistir, sobre ser forte, sobre autoaceitação…

Compunham a turma duas bonequinhas que andavam juntas e não se largavam por nada. Fizeram amizade ali na escola, mas pareciam irmãs de outras vidas. Tinha uma menina muto alta, muito quieta, muito compenetrada. Não falava com ninguém, mas era uma dessas raras inteligências para a área de exatas. Sempre surpreendendo com o seu poder de síntese, com seu raciocínio lógico e prático aguçado, mas muito envergonhada. Tinha também um menino, que mais parecia um homenzinho, muito responsável, amável e prestativo. Quase um gentleman. Percebia-se como era importante para ele o cuidado e o zelo com todos a sua volta. Descobri, mais tarde, que era filho de mãe solo. Assumiu grande parte da responsabilidade de cuidar dos irmãos e da casa enquanto a mãe trabalhava fora.

Tinha uma menina que queria ser escritora. Era muito jovem, mas já estava participando de um projeto municipal de pequenos escritores. Volta e meia trazia alguns de seus textos para eu ler. Eu sempre elogiava muito, porque eram textos promissores e eu contribuía com algumas orientações aqui e ali.

Para dar asas a essa menina e para os demais se expressarem, criamos um jornal mensal, em forma de mural, onde apresentávamos nossas contribuições sobre a comunidade, sobre a escola, sobre as pautas da disciplina. Tínhamos um espaço para os poemas e crônicas do cotidiano… Enfim, um espaço para que os alunos pudessem se expressar.

Uma vez arranjamos um pequeno problema, com a direção da escola, pois os alunos criticaram alguma coisa sobre a merenda. Não me recordo o que exatamente. Só sei que o diretor não gostou nem um pouco. Andou me olhando torto uns dias, mas depois ficou tudo bem.

Enfim, foram muitas as histórias vividas com esses alunos ao longo do ano de 2002. Cada um com suas realidades, suas alegrias e mazelas. Todos seres humanos em formação, vivendo suas vidas, apesar das condições sociais, culturais, políticas e econômicas em que estão inseridos. Que pode lhes libertar ou aprisionar. Que pode dificultar suas experiências ou empurrá-los para as suas realizações. Infelizmente, considerando a realidade de uma comunidade periférica, seja de Blumenau ou de outra região do país. As condições econômicas não contribuem para o seu pleno desenvolvimento, assim como os valores culturais, especialmente aqueles relativos a diversidade e gênero. Não se pode dizer que mulheres e homossexuais são estimulados a viverem plenamente seu potencial humano. Infelizmente essa é uma realidade nos dias de hoje.

Acho que o meu papel com professora foi mediar e mostrar que outras possibilidades de ver e viver o mundo são possíveis. Que os seres humanos podem e devem ser seres em construção. Parafraseando Jean-Paul Sartre, “sempre é possível fazer algo com aquilo que fizeram de nós”. Ou seja, nossos padrões culturais e nossos preconceitos não nos definem. Nós podemos mudar! E se podemos mudar a nós mesmos, podemos escolher ser pessoas melhores. Mais humanas, mais respeitosas, mais honestas, mais humildes, mais empáticas, mais justas, mais educadas, mais solidárias e éticas.

Enfim, essa é um pouco da minha história como professora. Acho que todos nós professores somos atravessados cotidianamente por essas outras histórias com as quais nos conectamos no exercício da nossa profissão. Acredito que é precisamente nessa conexão em que reconhecemos a alteridade do outro e nos percebemos como seres absolutamente responsáveis por guiá-los nessa caminhada, que habita a essência de ser professor.

Luciane da Luz, Socióloga

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