O relógio do Juízo Final está perto da meia noite. Para quem desconhece a história, em 1947, a artista norte-americana, Martyl Langsdorf, esposa do físico Alexander Goldsmith Jr, do projeto Manhattan (fabricação da bomba atômica), desenhou um relógio para a capa do Bulletin of the Atomic Scientists, da Universidade de Chicago. Este relógio faz uma analogia com a raça humana, mostrando que ela está a minutos da meia noite, hora da destruição do planeta por uma guerra nuclear. De lá para cá, o relógio aparece no boletim dos cientistas atômicos, anunciando o apocalipse, fruto da multiplicidade de atos e comportamentos de países e líderes diante da iminência de uso de armas de destruição do planeta. Hoje, está mais próximo do fim do mundo.
Pois bem, o simbolismo do relógio ultrapassa a mera figura metafórica. Basta olhar para a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, a cada semana expandindo seu poder destrutivo e ensanguentando a paisagem europeia. Quem diria que este conflito se estenderia por meses a fio? As tragédias contemporâneas, com suas filas de mortos, enfeitam as manchetes de jornais, servindo de primeira leitura nos cafés de manhãs. E, como paradoxo dos novos tempos, produzem camadas de insensibilidade. Morreram 2, 3, 5, 22 mil? As onomatopeias de horror ou de pasmo (Santo Deus! que infelicidade! quanta crueldade…!) são repetidas sem emoção. São extensões automáticas de um tempo sem calor humano.
Essa é outra faceta desses tempos tristes. Estamos juntos nas cadeias tecnológicas, porém distantes no oceano de águas frias. Nas teias das tecnologias, nossa expressão ganha latitudes e longitudes da Terra, aplaudindo ou criticando, fazendo loas ou apupos, estendendo as mãos para o próximo, mas quando tais atos carecem de um gesto físico, a ação humana, o eixo da condição do ser, nos esquivamos. São frágeis nossos laços com o outro, o desvalido deitado nas calçadas, o abandonado pelo poder público, o faminto (verdadeiro ou mentiroso, ambos nos sinais de trânsito rogando para enxergamos sua ossatura). O medo nos faz fechar os vidros do carro. Sinais do ciclo da fuzilaria.
A paisagem é tão cheia de sinais de violência que até a interpretação do professor Samuel Huntington em seu livro “Choque de Civilizações” parece coisa comum ao descrever o paradigma do caos: “Quebra da lei e da ordem, Estados fracassados e anarquia crescente, onda global de criminalidade, máfias transnacionais e cartéis de drogas, declínio na confiança e na solidariedade social, violência étnica, religiosa e civilizacional e a lei do revólver.”
Alguém pode objetar. Não seja tão pessimista. Veja a solidariedade nessa corrente formada para ajudar as vítimas dos terremotos na Turquia e na Síria. Sim, há um imenso cordão de voluntários que mostram sua humanidade. Não há dúvida. Mas o interesse de muitos países se ancora na visão geopolítica de ajudar, hoje, para ser ajudado amanhã, de dar para receber. Por outro lado, podemos identificar milhões de seres que padecerão dos sismos por falta de ajuda, isolados em territórios dominados por oposições, como na Síria.
Como dizem especialistas na região, como Guga Chacra: “Bashar al-Assad venceu a guerra e conseguiu se manter no poder. Mas comanda um país em ruínas, bem diferente do que era 2010, antes da eclosão do conflito. Depende da ajuda da Rússia e do Irã. Mas Moscou está com as atenções voltadas para a Guerra da Ucrânia e Damasco deixou de ser prioridade. O regime Irã, por sua vez, está com o foco no combate aos protestos contra o regime de Apartheid anti-mulher no país. Diante deste cenário, Assad se aproxima cada vez mais dos Emirados Árabes, que devem ser a principal via de apoio ao regime após o terremoto. Sabe-se lá, no entanto, quanto do dinheiro chegará a quem necessita, ainda mais levando em conta que boa parte das áreas destruídas não estão sob o comando do regime.”
Um mundo que multiplica as estruturas do caos nem mais temor provoca. Infelizmente, erva daninha e grama sadia, corrupção sem punição, bem e mal fazem parte do cardápio diário dos habitantes do planeta. O velho lema dos cowboys do oeste americano volta a dar as boas-vindas nos saloons adornados de cartucheiras: matar ou morrer.
O papa Francisco, sob o peso de sua autoridade, faz um alerta: o mundo está se autodestruindo. O secretário-geral da Organização das Nações Unidas, o português Antônio Guterres, usa o mesmo tom: “os riscos de uma escalada da guerra e mais carnificina não param de aumentar…guerra na Ucrânia, crise climática, pobreza extrema, o ano de 2023 começa com convergência de desafios nunca vistos em nossas vidas”. Por aqui, a devastação da população yanomami exibe a insensibilidade do poder público para com os povos indígenas.
Os dias têm sido tenebrosos.
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.
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