Por Jacqueline Roepke – Mestre em Educação
No meio do caminho tinha uma calçada…
Legislações sobre acessibilidade e/ou mobilidade urbana me causam curiosidade… Das duas uma, ou das duas duas: ou existem múltiplas regras concomitantes, ou nem todas são observadas…
Tinha uma calçada no meio do caminho.
Sou uma mulher – PEDESTRE – que gosto de eventualmente usar um salto alto. De uns tempos para cá, notei que as calçadas deixaram de ser planas. Parte delas se tornou levemente inclinada (algumas com muito aclive, eu diria). Possivelmente para facilitar o acesso dos carros, já que os locais tradicionais de estacionamento ficaram escassos, arranjou-se outro lugar para eles. O lugar que antes era dos pedestres (diga-se de passagem), que era geralmente plano, retinho.
Do meu ponto de vista (no caso, aqui de cima do salto), pessoas que têm carro já têm vantagens sobre as pedestres… Elas não precisam se molhar quando o tempo está chuvoso, nem ensopar os pés nas poças d’água, elas não chegam suadas nos ambientes, elas não gastam tanto tempo no deslocamento (salvo os casos de engarrafamentos, obviamente), sem falar que os sapatos delas têm maior durabilidade – com certeza.
No meio do caminho tinha uma calçada…
Então, para facilitar as coisas aos estimados motoristas, as calçadas literalmente se curvaram aos seus pés que repousam sobre freio, acelerador, e etc. e etc. Ah… Certo, talvez você está pensando que as calçadas mais modernas preveem um trecho plano, na parte mais imediata às construções.
Pois bem! Com certeza sua lembrança desse fato não está irrigada dos meus enjoos diários de sobe calçada, desce calçada, sobe, desce… Já não bastavam as oscilações de relevo… Agora mais essas…
Tinha um caminho no meio da calçada…
Não bastasse a aventura de “open down” de todo dia, alguém já parou para pensar que os percursos estão se alongando, dia após dia, passo a passo, diante dos nossos próprios olhos? Isso para os pedestres. Pois é, para o bem geral dos automóveis e felicidade geral dos motoristas (que disputam vagas de estacionamento – ouvi dizer), os pedestres precisam andar bem mais agora, mesmo que trilhem exatamente o mesmo percurso de sempre.
No meio do caminho tinha uma calçada…
Em uma das aulas de matemática, minha professora me convenceu de que o caminho mais curto entre dois pontos é uma reta. UMA RETA. As retas foram deixadas aos nobres motoristas. Aos pedestres, restou: sobe a calçada, pega a direita para achar um trecho plano (se você tiver sorte) daí pega a esquerda, para pegar uma nova direita e desfrutar de uns passos em superfície aplainada. Isso quando a calçada plana não termina abruptamente num muro, e você precisa se espremer entre os carros para descer até o acesso à próxima calçada… E o ziguezague continua…
Tinha uma calçada no meio do caminho…
Ufa. Estou exausta. Agora que cheguei a um trecho nivelado, coloco a mão numa parede, puxo o fôlego, fecho os olhos e faço uma oração para aliviar as tonturas (ops… eu queria escrever torturas, de torto mesmo: em cima, embaixo, pra lá e pra cá): Querido Deus que aplana as veredas! Meu esquema corporal está sendo desafiado, pois é uma atividade altamente complexa caminhar de salto alto numa superfície que oras inclina, oras desinclina, oras inclina mais ainda… Me ajude…
No meio dos carros tinha um pedestre…
Eu confesso! Para evitar a tortura e a prolongação do trajeto, eu já andei na beiradinha da estrada, ali no plaino. E já ouvi algum motorista berrar: “Tem calçada pra quê?” pela janela do veículo, que ele se deu ao trabalho de abaixar e deixar escapar um pouquinho do frescor da atmosfera que com ele vivia.
No meio de muitos motoristas tinha uma pedestre…
Que perda de tempo essa minha! Digitar todos esses caracteres… Palavras lançadas ao vento… Afinal alguém quer que pensemos que pedestres estão em extinção. Que todo mundo já tem carro.
“Sou uma mulher – PEDESTRE – que gosto de eventualmente usar um salto alto.”
Usa tênis .